sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O menino e as suas lembranças do inverno


Ao olhar o horizonte, o velho, agora irreconhecível pelo semblante de felicidade, observa tudo diferente. O sol, que outrora torrava o chão e secava as matas, agora é coberto por nuvens torrenciais que trazem alegria a um povo tão sofrido. A jurema, antes sem folhas e espinhenta, agora é pura beleza, o mameleiro explode em vida com flores da ponta à cabeça, o pé de mufumbo, com seu cheiro característico, faz renascer no mais temeroso o espírito da esperança e renovação, tudo está mudado, nada é como antes.

As Jandaíras, sabedoras do momento de fartura, aproveitam colhendo tudo que podem. Trabalham incessantemente em busca de pólen e néctar das mais saborosas flores da caatinga. O frenesi é grande, quando o inverno chega de verdade no sertão as Jandaíras começam a enfeitar com várias cores as entradas de suas casas, cada vigia passa o dia colorindo a recepção de seu cortiço com vários estames de flores, a cor predileta é o amarela, parecem querer dizer que os tempos são de ouro.

O velho, mesmo cansado pela idade, tem vontade de novamente caminhar em direção ao antigo córrego que sempre saciou a sede de sua família. Do alto da casa grande ele consegue, mesmo de longe, ouvir o barulho da água correndo. Sem demora calça suas alpergatas de couro amarradas com tiras de fitilho e segue o rumo das águas.

Antes disso, ele chama o Menino, que sem demora segue para acompanhá-lo. Já no caminho, o cheiro do mato molhado se mistura com o perfume das flores do sertão que agora floram e revigoram de maneira impressionante. A natureza, sábia de suas limitações, aproveita a oportunidade para uma explosão de vida.

Como diz o sertanejo, “ o inverno está pegado”, todos os animais aproveitam o momento raro de prosperidade e buscam o divino ato da multiplicação, o galo campina faz seu ninho, do mesmo modo, o joão de barro. A raposa, agora bem mais gorda e astuta, revira sua antiga toca para aguardar a sua gestação. O gato do mato, antes muito solitário, agora é visto acompanhado de uma fêmea caminhando lentamente em direção ao antigo serrote que corta a propriedade do velho, os únicos que não gostam do inverno são os urubus, que, ao não verem mais os frutos da seca e da fome no caminho, se recolhem à espera, pacientemente, dos tempos difíceis.

Ao chegar no córrego o velho e o menino se impressionam, o antigo e seco riacho agora é um largo braço de águas limpas e transparentes, alimentado pelas grandes corredeiras dos serrotes que circundam a larga propriedade. A água, fria e agradável, parece convidá-los para um banho. O velho resiste aos convites do menino e as tentações do mergulho. Os dois seguem e continuam ladeando o caminho, agora fechado pelo mato verde, riacho acima.

Na verdade, o velho procura algo especial, algo que há tempos não vê, nem ao menos comenta com ninguém com medo da visita indesejada de alguns. A frágil memória, combinada com a mudança do curso do rio, fazem perdê-lo a orientação.

O menino, já impaciente sem saber o porquê daquele caminhar tão diferente, questiona o avô de sua intenção. O velho, sem dar ouvidos ao garoto pára e pensa, devagar vai relembrando onde um dia avistou um velho ninho de Jandaíras que desde menino o acompanhou em suas lembranças.
Não demora muito e ele volta a se lembrar do local, logo retoma o caminho certo e segue na direção correta.
-Achei!!!
-Achou o quê? Diz o menino.

Entre a mata, agora muito fechada, ele encontra o local, Trata-se de um imenso e frondoso pé de Cumaru, nele, logo acima do galho principal, há uma antiga colônia de Jandaíras que por várias gerações vêm resistindo aos desafios da seca.

O velho, por diversas passagens da sua vida, teve vontade de mantê-las em um dos seus cortiços, porém, sabedor da valia de tão bela planta, nunca teve coragem de derrubar aquela espetacular representação da natureza somente para retirar as abelhas do seu interior. A dificuldade fez nascer no velho com o tempo uma admiração por aquela colônia, tornando-a muito especial. No lugar de derrubar jurou preservar e cuidar, mantê-la sob sigilo para que a sua justificada “inexistência” pudesse trazer-lhe segurança. Durante anos alimentou e cuidou para que sempre estivessem protegidas.

No passado as suas lindas Jandaíras eram muito comuns nos mais variados arvoredos da caatinga, todavia, devido a famigerada ambição do homem, quase não mais se vê as abelhinhas aladas do sertão. Sabedor de sua importância, manteve o local durante muitos anos intocável para a contínua preservação daquela linda colônia de Jandaíras. Nessas épocas de fartura dela viu sair muitas outras colônias.

O velho vagarosamente se ajoelha e fala ao pé do ouvido do menino com seus olhos cheios de lágrimas:

- Meu filho, eu trouxe você aqui para lhe fazer um pedido, eu estou velho e muito cansado, as forças de outrora não mais correm nas minhas veias e assim como todo mundo na vida, minha hora vai chegar. E quando isso chegar eu quero que você preserve essa planta pois nela há uma antiga geração de Jandaíras que estão instaladas logo ali, acima daquele braço principal. Elas são muito importantes para mim, mas são muito mais importantes para a nossa tão sofrida caatinga, preservando-as você estará também me preservando nesse velho pé de Cumaru.

O menino, agora atento a fala mansa do avô, escuta e compreende muito bem sua missão. Ele sabe que aquele escondido ninho de Jandaíras é especial para o velho, assim ele jura jamais derrubar e lutar para que planta, junto com as pequenas abelhas, possa resistir nas próximas gerações aos desafios da vida.

Sem demora, o velho, agora mais calmo, saca algumas bolinhas de cera de Jandaíra que tinha coletado dos seus cortiços na casa grande no dia anterior e guardado consigo para fornecer àquela colônia preservada. as prega próximo a entrada do ninho e pede ao menino para que todo ano ele traga alguma cerinha melada com mel para ajudar no desenvolvimento dos potinhos das abelhas, não demora muito e logo se vê as primeiras campeiras fazendo a coleta da cera.

Admirados com trabalho das dóceis abelhas deixam o local tomando o cuidado em apagar os rastros, logo voltam ao caminho do antigo riacho e agora sem demora, aproveitam o banho nas águas limpas do velho córrego. O banho demorado é interrompido pelo caminhar das horas que faz alaranjar o entardecer no sertão. Vai escurecendo e os dois novamente retomam o caminho a casa grande para mais tarde tomarem uma bela xícara de café com pamonha quentinha saída a pouco da antiga panela de barro.

Att,
Mossoró-RN, em 11 de fevereiro de 2011.

Kalhil Pereira França
Meliponário do Sertão

3 comentários:

  1. Amigo Kalhil,

    parabéns essa sua postagem,com certeza emocionou muitos nordestinos,por esses país afora...

    Como sou apaixonada pelo meu torrão e tenho meu avô com 102 anos,e sempre vivi essa realidade;fique muito emocionado...

    Abraço.
    Paulo Romero.
    Meliponário Braz.

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  2. Pois é Kalhil, linda história. Verídica, ou não, traz em seu bojo uma verdade nada fictícia: que todo meliponicultor - antes de ser um meliponicultor -, é um apreciador da natureza e se encanta com a beleza de uma parcela especial da mesma (as abelhas); saindo desse encantamento até mesmo poesia, fruto natural dos que apreciam. Um abraço. Fco. Mello

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  3. Prezados amigos, como toda história tem um fundo de verdade essa não é diferente.

    att,

    Kalhil

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