terça-feira, 19 de outubro de 2010

O velho e o menino


...Meio-dia no Sertão, o menino olha o sol brilhando com toda a sua força no céu, a cabeça pega fogo, como se fosse derreter de tanto calor, o suor escorre pelo canto da testa no mesmo instante que passa a olhar a rispidez dos espinhos do Mandacaru.

Por um instante pára e pensa, por que não vamos embora desse lugar, tanto sofrimento, tanta dependência das boas novas de São Pedro.

Cansado e descalço, caminha olhando o chão seco e rachado pelo sol, a terra ferida e seca, parece clamar por míseras gotas de água, mais uma vez ele pára e pensa...

Nessa época, quando até Deus parece abandonar o Sertão, os únicos que se fartam são os urubus, que se deliciam com as carcaças dos mais variados bichos mortos pela fome e pela sede espalhados pelo caminho.

Na espera de um milagre, ele abre os cortiços e não vê mel, as Jandaíras, mesmo valentes, mais do que nunca sofrem com a seca, não tiveram tempo de produzir o suficiente para uma boa produção, a postura baixa é sinal de tempos difíceis.

O cinza toma de conta do horizonte, a mata sem folhas torna-se feia e perigosa, as últimas reservas são gastas na tentativa de sobrevivência de mais alguns meses de seca e sofrimento.

Mais uma vez o menino pára e pensa, qual o porquê de tanta seca...

Mesmo assim, nesse cenário de sofrimento e desilusão, ele se pergunta por que tantos não abandonam essa terra, árida e esquecida, persistindo em ficar, mesmo sabendo que daqui não terão bons frutos e boas novas.

A tarde vem caindo e o sol se pondo no horizonte, as últimas Jandaíras vem chegando para o seu repouso noturno, o menino olha ao lado e vê o velho respirando o orvalho que vem chegando na leve brisa do fim do dia.

O menino não entende como o velho pode ser tão sereno e calmo, diante de tanta miséria e desilusão.

O velho, no clarão de sua longevidade se atenta ao traquejo do menino, de cabeça baixa e com olhar tristonho, pergunta: o que tens meu filho?

Nada vô, só não sei por que passamos todos os anos por tudo isso, essa seca maldita que só nos traz miséria e fome, tristeza e aperreio.

O velho, ao percinte o desânimo do menino se aproxima e o convida a olhar o horizonte, o jeito sereno do velho parece acalmar agonia do menino. Olhando os seus olhos, o menino, já mais seguro e tranguilo, escuta o seu velho responder:

Filho, a seca é só uma passagem, como tudo na vida ela vai passar, Deus nunca esqueceu de nós e ao seu tempo nos mandará as primeiras gotas de chuva.

A mata, agora seca e áspera, voltará a brilhar em vida, cheia de frutos e flores, o chão ficará novamente fértil, nos dando novamente a oportunidade de plantarmos nosso milho e feijão.

A asa branca e o bem-te-vi logo voltarão a cantar, alegrando o seu Sertão, agora tão triste e solitário, logo os córregos se encherão de água e os peixes procriarão, nos dando muitos outros peixes.
A cada palavra dita o menino percebe florescer no rosto do velho um sorriso contagiante.

Não demorará e as Jandaíras, sábias e dedicadas, logo iniciarão a coleta, nas mais variadas flores da caatinga, nos dando o doce mel que só nós conhecemos.

O menino, agora já mais calmo e destemido, não compreende muito bem as palavras do seu velho, mas sente que elas são verdadeiras, ele percebe que o velho guarda consigo um sentimento de esperança e apego àquela terra que, mesmo diante de tanta adversidade, nunca abandonará.

Somente muitos anos depois, já adulto e com a mente madura pelo decorrer do tempo, o menino, agora homem, compreende muito bem aquelas palavras que um dia lhe foram ditas numa tristonha tarde de verão.

O velho queria lhe dizer que o que faz sertanejo se manter, mesmo diante de tanta precariedade, de persistir naquele pedaço de chão adverso era o seu eterno sentimento de identidade, o sertão não é só a sua casa, mas é acima de tudo a sua própria existência, não há caboclo sem sertão, como não há sertão sem o sertanejo.

Talvez seja por isso que a Jandaíra, na natureza, só é encontrada na caatinga. Certamente, elas, as fortes valentes do sertão, amam, assim como aquele velho, esse pedaço de chão tão sofrido e antagônico...

att,
Mossoró-RN, em 19 de outubro de 2010.


Kalhil Pereira França
Meliponário do Sertão

9 comentários:

  1. Eu queria ter essa capacidade que o amigo tem de nos transportar para essas suas histórias tão bonitas.

    Parabéns belo blog, a cada dia melhor...

    Fabrício
    Americana/SP

    ResponderExcluir
  2. Kalhil,

    que emoção transmitida pelas palavras...

    à espera do seu livro...

    parabéns pelo blog, pela história,

    sentimos sua falta.
    mas voltou com tudo.

    Henrique
    BH / MG

    ResponderExcluir
  3. kalhil,fico feliz e emocionada de ver vc falar tão bem do meu sertão querido,sinto em vc o mesmo amor que todos os sertanejos sentem por essa terra tão querida.

    Sua sertaneja preferida.
    (Aprigia)
    sua mãe.

    ResponderExcluir
  4. Amigo Kalhil

    Bonitas Palavras para relatar uma vida tão dura que é essa do Sertão . . .

    espero que as coisas estejam bem, saúde e família . . .

    forte abraço

    ResponderExcluir
  5. Esse meu cunhado é porreta msm...

    sua história é igual para qualquer sertão... deu p viajar nela e lembrar do sertão da minha Paraíba...

    esse cabra é danado!!!


    Hans Dias PB/RN

    ResponderExcluir
  6. Kalhil,

    Parabéns pelas suas bonitas palavras, esse é um relato daquele que ama de verdade a sua terra, O Semi-árido precisa ser estudado e podermos apreciar esse ecossistema riquíssimo.

    Um abraço.
    Antonio Coelho
    Petrolina - PE

    ResponderExcluir
  7. Kalhil
    Meu amigo desejo tudo de bom para vc fazia um tempo que não vinha visitar este blogger.Ele como a chuva de verão aqui no sertão que caiu está semana cheio de esperança.Cara vc escreve muito bem, este texto me lembrou meu velho avô Eugenio Ferreira que me deixou de herança a paixão pelas jandairas.Por sinal as minhas se recuperaram e estão bem animadas.Felicidades, paz e muita saúde.
    Do amigo Jose Eugenio Ferreira Neto Caico-RN

    ResponderExcluir
  8. Lindo, lindo, lindo,....
    Belo texto, vc deveria realmente escrever um livro com essas prosas poéticas...

    Parabéns.

    Lúcia-São Paulo-SP

    ResponderExcluir
  9. Olá Kalhil, tudo bom? Estou dando uma passadinha no seu blog e que surpresa agradável... Vc tem jeito com a escrita hein? Por que não escreve um livro, como os amigos acima comentaram? Tem um site em que podemos publicar livros sem custo algum e aqui vai o lin caso vc se interesse: http://clubedeautores.com.br/
    No mais um abraço, ando atualizando um blog que coloquei o link no "jandaíra", e esse sei texto me fez recordar as férias que passava no interior,na infância, em que conheci de perto essa realidade do sertão.Abs Fco. Mello

    ResponderExcluir

Comentário aqui: