"Todos os textos vencedores são dígnos de publicação, mas o texto do Raul muito me chamou atenção não somente pelo linguagem poética usada, mas principalmente pela idade do meliponicultor, ele é apenas um garoto, um adolescente.
Mas sinto em suas palavras e fotos uma demonstração tão grande de afeto por esses pequenos insetos que não poderia deixar de registrar esse fato aqui. A sua hitória é capaz de seduzir novos adeptos a meliponicultura de maneira melhor que muitos tratados de manejo melipônicos.
Desfrutem de um dos melhores relatos a respeito da Meliponicultura que eu já li por aqui."
Por Raul Rodrigues
‘A menina moça olhou pela porta dos fundos, os dois olhos castanhos e atentos fitavam as duas casinhas de madeira e telha branca. Seu pai, austero e atento sob seu chapéu de palha, do lado de fora, observava sem poder fazer nada. Com os olhos bem abertos, arregalados, ela saiu de casa cautelosamente, ao lado de seu pai, fitou a agonia das uruçus, jandaíras, moças-brancas, mosquitos e rajadas sob um grandioso e faminto enxame da abelha ‘óropa’.
Cortiço por cortiço, colônia por colônia, as abelhas eram massacradas. O chão de terra batida, dia após dia, adquiria uma cobertura de abelhas mortas em sua luta valente contra as invasoras. A menina mulher sentiu seu coração palpitar. As canudos de seu pai já não existiam mais, as uruçus estavam quase extintas, resistiam as jandaíras e as rajadas, e estas últimas pareciam estar perto de seu último e triste suspiro.
Ela estava cansada de assistir ao massacre, ele também. Ele também. Depois de devotar seu amor e parte de seu tempo livre às abelhas sem ferrão, agora podia ver todo seu trabalho jogado fora, e o pior, impunemente. Na cidade próxima um enxame da ‘óropa’ havia matado um homem, no povoado ao lado, um boi, ninguém era doido de chegar perto da ‘abeia atentada’.
Em meses todos os cortiços estavam vazios, com exceção de uma mosquito ou jati entre duas telhas, que até hoje, cerca de quarenta anos depois, persiste no mesmo lugar. De duzentas colônias, ele chegou a apenas uma. De litros e litros, a nada, só o vazio e o lamento de quem fora o maior meliponicultor de uma região. ’
Na foto acima existe o que restou do cenário da história: o último quarto preservado da demolição fazia parte de uma grande, antiga e respeitável casa de tijolos brancos, onde gerações de minha família moraram, no distrito de Areia Branca, entre Lagoa Salgada e Vera Cruz, atrás, sob a jaqueira, havia dois galpões onde meu bisavô criava suas abelhas.
Minha avó, a menina moça, hoje não tão menina (e moça), foi quem me relatou os fatos para que eu pudesse tirar da minha imaginação a pequena crônica aí de cima, estes fatos também são responsáveis por terem me inspirado a se tornar, não o meliponicultor de hoje, mas o amante obstinado das criaturas maravilhosas que são o infatigável povo alado fazedor de mel.
Tudo começou depois de um desmaio meu durante um manejo-aula de apicultura. Em baixo do sol quente do Nordeste, maravilhado ao observar o trabalho incansável e a organização impecável das abelhas, agoniado pelo zumbido e desidratado e faminto(não havia tomado café da manhã), acabei com a vista escurecida, tonto e na beira de um desmaio. Dei preocupação a Gunthinéia, minha professora, mas depois, preocupei ainda mais minha mãe, que fez questão de preocupar minha grande família em questão de minutos.
Levei um carão dela e de todos meus familiares. Minha avó não fez diferente. No entanto, depois do sermão, ela me contou que existiam abelhas sem ferrão. Surgiu a paixão. E meu pai deu corda. Li a obra do Monsenhor Huberto em menos de dois dias, encontrei entre outros este site, fui alimentando minha fome de conhecimento, e de curiosidade, desde então, nunca deixei de estudar as abelhas, seu comportamento, sua biologia, seu manejo e sua história.
Depois de diversas buscas infrutíferas, conseguimos três colônias de jandaíra, foi trabalho demais para um meliponicultor de primeira viagem. No mesmo dia, tive que salvar uma colônia quase extinta e fazer crescer duas outras famílias nada boas. Segui nesse rumo até outubro deste ano, quando houve o X Congresso Íberolatinoamericano de Apicultura, em Natal, do qual fui estagiário e parte da comissão organizadora (graças à minha amiga e professora Gunthinéia, Secretária Internacional do evento).
No congresso fui um dos responsáveis pelo stand de meliponicultura, onde havia o meliponário móvel de Paulo Menezes, alguns cortiços inabitados de jandaíra e cinco colônias de uruçu, deixadas á mostra pelo Coronel Sérgio Guimarães, que, antes disso, havia me chamado e dito: ‘Raul, vi o quanto você é empenhado. Temos aqui cinco colmeias de uruçu... Se você conseguir me vender quatro, fica com a quinta.’
Não acreditei, mas mesmo assim, vendi todas em menos de quinze minutos. E com o fim do congresso, tive minha primeira colônia de uruçu (olha os favos de cria dela aí do lado), e um último parecer do Coronel: ‘Você ama o que faz, você vai longe.’
Não fiquei estagnado, procurei crescer em conhecimento (e número de colônias, é claro). Por um acaso, descobri que um dos meus tios-avôs (meu ‘pedigree’ é de meliponicultor, minha família é meliponicultora por excelência, rsrs) ainda mantinha duas colônias de jandaíra, e tinha interesse em vendê-las, comprei-as sem demora alguma, hoje, tenho minhas promissoras seis colônias de jandaíra, uma delas resultante de uma divisão, a primeira colônia de uruçu, duas colônias de mosquito (presentes, as duas), uma colônia de rajada em um toco de barriguda e outra de moça-branca em um tronco de jucá, ainda não as situei por falta de tempo, mas pretendo fazer isso assim que terminar o semestre.
Meus cortiços tem uma diversidade incrível de cores, tamanhos, formas e madeira(infelizmente, de qualidade também), mas agora, emprego os ‘meus’ próprios cortiços. Meu pai tem uma empresa de marcenaria, e como bom incentivador, é quem confecciona para mim as caixas, basta eu lhe dar as medidas (e ele ter tempo) e temos uma colmeia de qualidade pronta para ser habitada.
Todas as minhas colmeias são no modelo nordestino (meio suspeito), com exceção de uma, que é uma INPA meio ‘adulterada’, com encaixe macho-fêmea entre os módulos. Sempre efetuo minhas inspeções periódicas aos fins de semana de quinze em quinze dias, no entanto não regularmente, porque não vivo só de abelhas sem ferrão (infelizmente) e não curto muito o estilo Chico Xavier de fazer provas de cálculo.
Todos os meus manejos são efetuados por mim, e geralmente sou secundado pela minha irmã, única disponível (meu pai vive ocupado e minha mãe prefere não se ‘apegar’ a outro animal além da cadela da família), é uma excelente e curiosa auxiliar, sempre ávida por ser recompensada por seus serviços com uma colher de mel (no lugar, lhe dou sempre uma colher de xarope, não sei como ela ainda não percebeu, rsrs).
(olha ela aí na foto, parecendo uma cigana, com sua colmeia de jandaíra preferida)
Minha avó é uma fonte de conhecimento antigo à cerca da meliponicultura, sempre a procuro além dos livros antes de proceder com alguma forma de manejo, buscando uma ‘conciliação’ entre a experiência dos antigos e o conhecimento técnico e científico, além dela, procuro sempre conhecer outros meliponicultores, e, mesmo que não tenham tanto acesso à literatura e ao modo de proceder mais eficiente, sempre ouço atentamente tudo o que eles podem dizer.
Minha perspectiva sincera é crescer, mas crescer aprendendo, esperando chegar a hora certa para cada coisa, não colocando a carroça na frente dos bois.
Esse rapaz radiante na foto acima sou eu, Raul, ao lado do meliponário feito por meu pai, Lucas. O meliponário é eficiente, mas já não comporta bem meu número de colônias. Neste fim de ano, a Escola Agrícola de Jundiaí, da qual sou estudante, teve a aprovação de um projeto seu de meliponicultura, no qual posso reconhecer que tenho ‘mais de um dedo’, com o projeto a unidade da UFRN será contemplada com a instalação de um meliponário em suas dependências.
Inicialmente, nosso projeto só prevê a realização de nosso trabalho de pesquisa, mas depois, tenho esperanças de que finalmente a meliponicultura será colocada entre a grade de matérias da escola, fazendo conhecer e preservar nossa tão querida e amada ciência(ou arte?), e eu vou cumprindo meu papel de meliponicultor, divulgando nossos serviços, trabalhando por nossas abelhas, na esperança de que nós sejamos reconhecidos publicamente como o que já somos: nobres preservadores das tradições de uma forma de conhecimento tão necessário.
att,
Raul Rodrigues
Jundiaí-RN